quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Natal


"(...) Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos de enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos espessamente a miséria cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão.

A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah esse doce rabi! quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus o conduzissem, por seu mando a Cesareia. Errando esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse rabi que amava as criancinhas, ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:– Oh filho e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos à procura do rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Corazim até ao país de Moab. Sétimo é forte e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hébron até ao mar! Como queres que te deixe! Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora connosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?

A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:– Oh mãe! Jesus ama todos os pequenos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!E a mãe, em soluços:– Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.

De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:– Mãe, eu queria ver Jesus...E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:

– Aqui estou."
"
excerto de O Suave Milagre" - conto - Eça de Queiroz

Um Santo e Feliz Natal para todos.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Por que não?...

O PSD continua a sua trajectória rumo à balcanização total - desde Santana Lopes até Alberto João Jardim, passando por Aguiar Branco, Passos Coelho ou Marcelo Rebelo de Sousa, o partido transformou-se numa imensa manta de retalhos onde todos apontam caminhos, todos descredibilizam a já frágil "liderança", todos dão palpites, todos "rompem" um tecido já esfarrapado, todos se colocam em bicos de pés.

Não há um esboço, sequer, de alternativa para a governação. Uma única ideia digna desse nome que mobilize o País. A dignidade da construção de um projecto alternativo credível. Nada. Apenas a maledicência, o ataque pessoal centrado no Primeiro-Ministro, o remexer no "lamaçal" das notícias dos tablóides, os pequenos "comícios" das mesmas caras de sempre, dos mesmos "chefes" e "sub-chefes", o contínuo desfile de vaidades e de vacuidades.

A navegação à vista é óbvia - e como o único "projecto" laranja actual é o ataque permanente ao PS, ao PSD tanto faz andar de braço dado com o Bloco de Esquerda como dançar à cossaca com o PCP e de tudo temos visto um pouco.

A verdade é que o País precisa tanto de um Governo forte como de uma Oposição que seja efectiva alternativa nas escolhas do eleitorado. E isso não existe actualmente.

O Governo legitimamente eleito vê-se permanentemente boicotado na sua actuação, mesmo em questões fundamentais para o exercício do Poder e considerando que o julgamento a fazer pelo eleitorado deve ter em conta a expressão de um programa próprio e não as "imposições" de quem não foi escolhido para governar; o principal partido da Oposição está transformado num vulgar "saco de gatos".

Quando até Santana Lopes já coloca a hipótese de abandonar o partido, caso a situação não se clarifique, creio que deveríamos ser mais "arrojados" - e que tal destacados militantes laranja convocarem um Congresso para propor a extinção do actual PSD?... Os verdadeiros sociais-democratas do actual PSD reconhecer-se-íam facilmente no socialismo democrático do PS; os seguidores da "vertente PPD", encostados à Direita, teriam uma opção razoável no CDS/PP e encontrariam, para já, o líder que há tanto tempo procuram. Os poucos que sobejassem talvez pudessem ir comer uns pastéis a Belém, para adoçarem a boca...

Quem sabe se desta forma a situação político-social do País não se clarificaria sem necessidade de se convocarem eleições antecipadas?...

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Lembram-se da Irlanda?...


Lembram-se da Irlanda?..

A Irlanda era o exemplo de sucesso que a Direita dava, ainda há pouco tempo, em termos económicos e sociais. Normalmente sublinhado com uma frase que se pretendia certeira e demolidora - "e vejam lá que eles nem têm auto-estradas, aquilo é que é um País a sério, nada como nós por aqui!..."

O que aconteceu entretanto?

A crise internacional revelou todo um conjunto de excessos cometidos pela Irlanda durante os anos em que tudo parecia "brilhante". A bolha que se desenvolveu no imobiliário rebentou estrondosamente e encheu os bancos de crédito hipotecário malparado, provocando uma contracção no sector da construção.

Esta circunstância, em conjunto com uma acentuada diminuição da procura externa, precipitou a economia na mais grave recessão de que há memória. A crise "estilhaçou" completamente as finanças públicas, com as receitas fiscais a acompanharem a quebra da actividade e as despesas sociais a subirem em flecha com o desemprego.

Face à ameaça de implosão do sistema bancário, com uma recessão grave entre mãos e a deterioração da situação orçamental, o governo irlandês prescindiu do estímulo económico de curto prazo e elegeu como prioridade a estabilização do sistema financeiro e das contas públicas. Esta opção implicou uma intervenção sem paralelo no sistema financeiro e a adopção de medidas drásticas, incluindo aumentos de impostos e cortes nas prestações sociais.

Em suma: o tal exemplo de "sucesso" que foi sobejamente elogiado e propagandeado por partidos como o PSD (Miguel Frasquilho era um desses "entusiastas"!....) enfrenta o período mais negro dos últimos 70 anos. Estimativas recentes indicam que o Produto Interno Bruto (PIB) irlandês deverá contrair-se 8,3% já em 2009 (Economic & Social Research Institute (ESRI), relatório trimestral). Em 2010, a economia irlandesa vai provavelmente recuar 1,1%, ainda segundo a mesma fonte.

Afinal a Irlanda, a tal que, por cá, era dada como exemplo de crescimento económico pelos partidos de Direita, está agora num combate sem tréguas para conter o seu défice orçamental e lidar com o forte aumento do desemprego, que já vai em mais de 11%, o nível mais elevado dos últimos 13 anos. Quanto ao défice irlandês deverá atingir os 12% do PIB em 2009, apesar de todos os esforços do Governo liderado por Brian Cowen, que incluiram aumento de impostos e cortes nos gastos públicos.

Lembram-se da Irlanda?... Pois é...

sábado, 12 de dezembro de 2009

Citação


"Admiram-se às vezes certas pessoas de que um autor medíocre seja normalmente o triunfador do seu tempo. Mas o autor medíocre é que é admirado pelos medíocres. E a mediocridade é o que há de melhor distribuído pelos homens".


Vergílio Ferreira

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Lamaçal...

No lugar onde já existiu o campo de jogos do Grupo Desportivo de Rio de Mouro, Rinchoa e Mercês, mantém-se um imenso lamaçal. Já aqui nos referimos a este assunto, mas nada parece ter avançado.

Caberia à Junta de Freguesia de Rio de Mouro pressionar uma resolução - já o fez? Quando? Como?

Caberia à Câmara Municipal de Sintra concretizar a obra propagandeada - mas aquilo que é patente é um imenso lamaçal sem qualquer sombra de início de obra.

Restam os habitantes de Rio de Mouro (sobretudo os muitos jovens) privados de um espaço para a prática desportiva, tal como continuam privados de um parque urbano que jamais passou do papel e que tanta falta faz nesta zona.

Parece que, em Rio de Mouro, a "obra do regime" se ficou pelo crematório... Quem cuidará dos vivos?...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Uma ideia para Sintra


Ao contrário de outras cidades e vilas do nosso País, Sintra nunca desenvolveu (propositada ou inadvertidamente) nenhum evento, com impacto significativo em termos de marketing territorial e que se constituísse enquanto pólo dinamizador do comércio local, dos agentes de Cultura, da animação dos espaços públicos e/ou culturais, etc.

Obviamente que existe um Festival de Música (Clássica) de Sintra – mas, não querendo desvalorizar o mesmo, trata-se de um evento demasiado elitista e que não constitui, de forma alguma, uma “marca” distintiva imediatamente associada ao Concelho.

Dou exemplos concretos daquilo a que me refiro: Óbidos e o Festival do Chocolate ou, agora, a Cidade do Natal; Amadora e o Festival de Banda Desenhada; Cascais e o Festival de Jazz; Loulé, Sines ou Ovar e os Desfiles de Carnaval; o Porto e o Fantasporto; o Estoril e o Festival de Cinema; etc, etc, etc. São eventos que dinamizam aqueles territórios, atraem visitantes, mobilizam a população residente, apoiam o comércio local.

Sintra tem uma paisagem natural e um património notáveis e únicos que só farão sentido se forem "vividos" e usufruidos. Por outro lado, há todo um Concelho que se estende muito para além do Centro Histórico, da Pena ou do Castelo dos Mouros e que carece, igualmente, de processos de atracção e animação.

Pela sua História, pela sua ligação ao esotérico e misterioso, pelo seu romantismo, pelo seu “ambiente”, pelas actividades características da região, Sintra tem todas as condições para conceber um ou dois grandes eventos similares àqueles que apontei anteriormente. Imagine-se, por exemplo, todo um conjunto de eventos ligados à sub-cultura “
Gótica”, desde a atribuição de um Prémio Literário na área do Fantástico (que bem se podia designar, por exemplo, “Lord Byron” e ter um Dan Brown a entregá-lo em Sintra...), agora que os romances de “vampiros” até estão novamente na ribalta; um festival de Cinema sobre o tema com sessões em diversas salas do Concelho; organização de festas temáticas em locais de diversão nocturna; encenação de espectáculos de teatro em diversos espaços culturais (ex: Regaleira, Palácio da Pena, CC Olga Cadaval, Teatroesfera, associações diversas do Concelho); organização de uma Conferência internacional com especialistas em temas esotéricos, etc. Alguém duvidará do impacto de uma iniciativa deste tipo no tecido social e económico do nosso Concelho, para além das potencialidades enquanto “marca”, mesmo para além do território nacional?

Obviamente que os poderes públicos, ao nível local, são determinantes no “kick-off” de qualquer projecto deste tipo, devendo assumir a “liderança” do mesmo, gerando apoios e alargando o seu espaço de influência – mas até quando continuarão a fazer de “Bela Adormecida” em Sintra?...