quarta-feira, 24 de março de 2010

Combater o "bullying"


A questão do “bullying” nas nossas escolas começa a ser dramática nos dias que correm. Em vez de “santuários” de segurança e aprendizagem, as escolas começam a surgir associadas a práticas de brutalidade sem limites e de medo. Pior: a sensação de impunidade para os “carrascos” começa a ser demasiado chocante e são as vítimas quem tem que optar por mudar de escola, alterar hábitos diários ou, em casos extremos, suicidar-se face à insuportável dor do quotidiano, como aconteceu recentemente com uma criança, no Norte do País.

Sejamos honestos: arruaceiros e provocadores sempre existiram (infelizmente) nas escolas. Sempre existirão, na sociedade em geral. O problema aqui é de escala – o simples arruaceiro de ontem, o rapazola que a escola punia e obrigava os pais a intervir sem apelo nem agravo na sequência de uma simples briga no recreio, transformou-se hoje em dia num aprendiz de requintado mafioso, cheio de lábia e de manhas, capaz de espancar sem testemunhos, rigoroso ao traçar cobarde estratégia de vingança ou punição do “alvo” eleito, armado de sofisticadas “armas” como as redes sociais na Internet que permitem a fácil difamação de qualquer um. Ao ser apanhado no cometimento dos seus crimes (e tratam-se, efectivamente de crimes, não vale a pena dourar a pílula!), o carrasco feroz transfigura-se em “criança”, “fragiliza-se”, sabe que a idade lhe dará estatuto de quase inimputabilidade e “hiberna” calmamente até que possa atacar de novo. Quanto aos pais (quando não existe apenas mãe, ou pai, ou avós, com quem se vive, nos “novos modelos de família” que tantos parecem achar “moderníssimos”…) hesitam demasiadas vezes no castigo exemplar (“são crianças…”), ou ignoram pura e simplesmente a gravidade do problema, entregando a “educação” dos seus filhos à televisão, à Playstation e ao acaso da sorte. Nas escolas parece não existirem responsáveis, cada qual empurra o problema daqui para acolá, só ouvimos debitar siglas, DREL, DREN, etc, e o discurso é também (e infelizmente) demasiadas vezes brando, embrulhado no celofane das “experiências pedagógicas” e acabando quase sempre “lavando as mãos”, como Pilatos.

Nenhuma crise financeira ou cenário de dificuldades económicas justifica este “caldo cultural”. Os nossos avós passaram fome, atravessaram guerras, palmilharam quilómetros a pé, sofreram na pele o analfabetismo, cerraram os dentes à repressão de uma ditadura, viveram, em geral, muito pior do que qualquer um de nós na actualidade, com menos conforto, com menos recursos, com menos facilidades – mas, em quaisquer circunstâncias, orgulhavam-se da educação que davam aos seus filhos. Orgulhavam-se de transmitirem valores tão simples como a honestidade, a honra, a entreajuda, a defesa dos mais fracos. Ontem os nossos jovens liam “Coração”, de Edmundo de Amicis, “Os três mosqueteiros”, de Dumas, “A ilha do tesouro”, de Stevenson – hoje assistem a séries onde o criminoso é herói e o trapaceiro sai vitorioso, jogam jogos electrónicos onde ganha quem matar mais, roubar mais ou espancar mais, recusam roupa que não seja de marca e consideram estudar “uma seca”. A culpa é deles? Não – é nossa. Facilitámos demais. Todos - pais, professores, governantes. Construímos modelos de ensino com pedagogias eventualmente óptimas para adultos mas que não eram (são) minimamente adequadas para crianças. Tivemos medo de impor regras, disciplina, exigência, achando que eram atributos “ultrapassados”. Confundimos experiências más do passado com outras que eram francamente positivas e que deviam ter prosseguido ou continuado a desenvolver-se, enquadrando os nossos jovens, dando-lhes “balizas”, dando-lhes desafios a superar. Hoje em dia pode entrar-se num curso Universitário com nota inferior a 10 valores, numa escala de 0 a 20 e “exame” é palavra quase proscrita, porque a avaliação é sempre “contínua”, para não “traumatizar” ninguém… Na antiga Escola Primária realizavam-se exames orais e escritos na 4ª classe (actual 4º ano do Básico) e seria inconcebível que alguém lograsse sequer concluir o Secundário no estado de absoluta ignorância com que alguns dos nossos jovens hoje se candidatam, actualmente, a muitos Cursos Superiores!... Obviamente que se tratam de meros exemplos e nem tudo estará bem de um lado e mal do outro, a realidade é mais complexa – mas representam uma boa medida de algo que se “degradou” e que contribuiu para criar uma sociedade onde há menos respeito por regras, hierarquias, valores, sentimentos e, em geral, pelas PESSOAS, não nos iludamos com a generosidade legislativa face a alguns novos fenómenos sociais que, muitas vezes, não passam de complexos processos de “lobbying” construídos ao longo de anos por parte de alguns grupos organizados. Esta é, também, a sociedade-espectáculo, a sociedade-ilusão, nem tudo o que parece, efectivamente é.

E regressamos ao malfadado “bullying”… Que não tem apenas a ver com o pesadelo diário de muitos jovens ameaçados, acossados, perseguidos – contribui, igualmente, para a degradação da Escola Pública. Os casos a que vamos assistindo (sobretudo os mais graves) passam-se em escolas públicas, o que não será por acaso. Os pais inquietam-se, aqueles que têm recursos optam por escolas privadas, procurando tranquilidade e sabendo que terão a quem pedir responsabilidades directas em eventuais situações dissonantes que possam surgir. Os outros, a grande maioria, não tem outro remédio senão continuar a confiar a educação dos seus filhos à Escola Pública, porque os recursos financeiros de que dispõem são escassos. É por isso que o agente directo de actos de “bullying”, o arruaceiro, o criminoso, não está apenas a prejudicar uma determinada pessoa que elegeu como objecto do seu fel doentio – está a prejudicar toda uma comunidade educativa e a denegrir todo um sector de ensino, por arrasto.

Já chega de “paninhos quentes” – quem comete um crime deve ser punido. Quem agride, ameaça, violenta - deve ser punido. Que se ponderem diferentes punições em função da idade, do contexto familiar, da situação concreta de cada agressor - mas que não se deixe de punir. Já chega de virar a cara para o lado ou inventar falsas desculpas para não tomar uma atitude. Carrasco e vítima não podem ter as mesmas prerrogativas. Comecemos, desde já, a reconstruir uma cultura de exigência, de rigor, de seriedade, que deixámos degradar até aos limites. E comecemos pelas novas gerações ou estaremos, definitivamente, a hipotecar o Futuro.

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