Era uma vez uma casa no alto de um monte que era considerada uma das casas mais belas do lugar. Dentro da casa vivia uma velha senhora e um rapazito que ela adoptara. Toda a casa, por dentro, estava forrada a espelhos, porque a velha senhora adorava ver-se e rever-se nos espelhos, sentindo-se a mais bela das belas e a mais inteligente entre todos os sábios da Terra.
A tarefa principal do rapazito que vivia com ela consistia em limpar, meticulosamente, os espelhos de toda a casa, de forma a que nunca existisse nenhuma dedada, nenhuma mancha, nenhum excremento mínimo de mosca que ofuscasse a imagem que a velha senhora adorava ver reflectida de si. Nos dias em que se levantava com algumas olheiras devidas a mau dormir, berrava para o rapazito cobrir os espelhos da casa com alvos lençóis de algodão, de forma a que os espelhos não pudessem reflectir uma imagem que considerava menos boa de si.
E assim se passavam os dias...
Quando a velha senhora se deitava, o rapazito aproveitava para abrir um pouco uma janela das traseiras da casa e cantarolar baixinho velhas canções de quando andava na escola, como uma que rezava assim:
"- Eu prometo, tu prometes, eles prometem, nós prometemos... ai, ai, ai...e eles votam! Trailarai!..."
Era uma velha canção dos tempos em que se candidatara a delegado de turma no 9º ano e conseguira ganhar a eleição prometendo, a todos os colegas que votassem nele, meia dúzia de rebuçados e três cromos de craques da bola. Claro que depois de ganhar rapidamente esqueceu as promessas, mas que importava isso?... Gostava de a cantarolar, assim baixinho, recordando esses bons tempos idos...
Um certo dia de manhã bateram à porta. Era outra velha senhora, muito amiga da que vivia na casa com o rapazinho e que vivia longe, numa terra bem afastada dali. Para dizer a verdade, realmente nem sempre tinham sido assim tão amigas - o rapazinho ainda se lembrava de ouvir a sua ama dizer que detestava a pose da outra, que ela tinha a mania que era boa, que não a podia ver nem pintada, mas o que era certo é que, certo dia, a velha senhora que vivia longe visitou a sua ama, levou-lhe um espelho que dava exactamente para cobrir todo o tecto do sótão (única parte onde faltavam espelhos) e as duas fizeram as pazes e juraram amizade eterna. No final o rapaz serviu chá de jasmim e bolachinhas de canela e ambas acabaram a tarde a desfolhar albuns de recortes, com fotos das duas, retirados de revistas cor de rosa.
Entretanto o tempo tinha passado e as duas estavam já há muitos meses sem se verem. Mal o rapazito abriu a porta caíram ambas nos braços uma da outra, o ar encheu-se de risinhos e de gritinhos e logo acabaram sentadas na sala, enquanto o rapaz preparava um pequeno lanche.
- Então, cara amiga? A que devo a honra desta visita? - perguntava a dona da casa com um sorriso rasgado.
- Deu-me saudades suas, sabe?... Já não suportava estar tanto tempo sem vê-la, meu anjo...
- Mas assim, de repente? E logo para se dar ao trabalho de suportar uma viagem tão incómoda e tão longa?... - questionou a velha senhora que vivia na casa do monte, ainda com resquícios de uma certa desconfiança e de um tempo em que dizia da outra aquilo que Maomé jamais dissera do toucinho.
- Bem... - pigarreou a outra - Já que insiste, e para além da cruel saudade que me tolhia o coração e me impeliu a visitá-la, também há um favorzinho que lhe queria pedir..
- Diga lá, amiga... - sussurrou a ama do rapazito, já de pé atrás e mexendo o chá devagarinho, com uma colherzinha de prata.
- Sabe...eu queria perguntar-lhe se era possível usar a sua casa durante uns dias e os seus espelhos porque há um canal de televisão que quer fazer uma reportagem sobre a mulher mais bela e mais influente do Mundo e eu acho que este cenário é o ideal...
A dona da casa rasgou ainda mais o sorriso, quase deixou cair a chávena e levantou-se de súbito para abraçar a amiga:
- Ai, querida, que bom, que feliz me sinto por se ter lembrado de mim! Mil vezes obrigado! E quando vêm cá a casa filmar-me?
O rapazinho, eufórico e saltitante, já correra para o seu pequeno computador portátil e preparava-se para actualizar o perfil da ama no "Monte Book", um site onde todos os habitantes daquela terra exibiam as suas fotos, opiniões, ditos espirituosos e até brincavam, tal qual criancinhas, com um jogo que consistia em criar gado bovino e alimentá-lo a pão de ló.
Foi nesse momento que a visitante interrompeu:
- Creio haver aqui um equívoco... - balbuciou.
- Equívoco?... Como?... - respondeu a velha senhora refreando o abraço com que envolvia a outra.
- É que... a minha ideia era pedir a sua linda casa emprestada mas para fazerem uma reportagem comigo... Comigo... entendeu, cara amiga?...
O rapazinho susteve até às lágrimas o grito que ía a dar por ter entalado os dedos no seu pequeno computador. A sua ama, lívida, recuou três passos e sentiu uma tontura leve...
- Emprestar-lhe a minha casa?... Para você brilhar em frente aos meus espelhos?... Logo você que só pode ser a 2ª mulher mais bela e mais inteligente do Mundo porque, obviamente, a primeira SOU EU?! - vociferou, já de cabeça completamente perdida.
- Ai, deixa-me rir! - provocou a outra - Você a mais bela?! A mais inteligente?! Só se for aqui no monte onde todos são ignorantes! Ah, ah...
Ainda hoje ninguém consegue explicar completamente o que se passou. O certo é que, num ápice, as duas se envolveram numa bulha furiosa e todos os espelhos da casa acabaram reduzidos num montão de cacos! Não sobrou nem um centímetro onde nenhuma das duas se pudesse mirar e realmente, no final daquela luta feroz, triste figura veriam de ambas...
Os vizinhos, incomodados com tal estardalhaço, chamaram a policia que acabou por internar as duas num hospício, já que não diziam coisa com coisa e insistiam em agredir-se mutuamente. E aquela que fora a mais bela casa daquele monte e arredores estava agora reduzida a um monte de escombros.. Já não servia para ninguém...
Quanto ao rapazinho fugiu para bem longe, assustado com o rumo que as coisas levavam e nunca mais ninguém o viu, embora haja quem jure que, nas noites de lua cheia, ainda se ouve a sua vozinha ao longe cantarolando:
"- Eu prometo, tu prometes, eles prometem, nós prometemos... ai, ai, ai...e eles votam! Trailarai!..."
1 comentário:
Qualquer semelhança com a realidade é pura ficção.
Tenho pena do rapazinho...
Enviar um comentário