quarta-feira, 7 de julho de 2010

A persistente orquídea


Confesso: gosto muito da escritora Alice Vieira, porque gosto muito do grande ser humano que adivinho através da sua escrita. E digo "adivinho" porque, infelizmente, não tenho o privilégio de ser seu amigo e apenas me lembro de ter trocado umas breves palavras numa Feira do Livro longínqua. Em 2009 publicou esta crónica no Jornal de Notícias, que é uma das minhas favoritas e que aqui reproduzo com a devida vénia:


"Com tanta gritaria que vai por aí - ouviu ou não ouviu, foi ou não foi escutado, roubou ou não roubou, foram milhares de euros ou uns trocaditos para o parquímetro, a vacina mata ou a vacina salva - eu hoje decidi fechar para férias.


Isto é: decidi impermeabilizar ouvidos e olhos a todo o arraial que vai lá por fora, e ficar a olhar para as minhas orquídeas. Qual Nero Wolf de S.Sebastião da Pedreira.


Claro que hoje já ninguém sabe quem era Nero Wolf. Os ingénuos romances policiais, de detectives a escorrer brilhantina com secretárias a escorrer Chanel n.º5, foram à vida. Mesmo os que se consideravam "negros" são hoje cor-de-rosa claro, comparados com todas as séries do género que a televisão mostra. E, sem o cigarro na ponta dos dedos, os "private-eyes" e as mulheres-fatais ficaram, definitivamente, desempregados, porque toda a gente sabia que era daquelas baforadas de fumo que havia de sair a resolução do problema (no primeiro caso) e a ida para a cama (no segundo).


Mas Nero Wolf (criado por Rex Stout) nem sequer se encaixa muito nessa categoria, nem é sequer das minhas personagens preferidas, com os seus mastodônticos 130 quilos, bebedor compulsivo de cerveja, de uma inteligência fora do normal e vaidoso dela ("não sou Deus, sou apenas um génio"), sempre metido em casa, e resolvendo os casos depois de o seu assistente lhe ter feito o trabalhinho todo.


A espécie humana interessava-lhe muito pouco, mas amava, apaixonadamente, orquídeas.


Milhares de orquídeas povoavam-lhe o telhado e a vida. De um pé de orquídea nasciam logo mais dez ou 20. E é só por causa das orquídeas que eu hoje me lembrei do Nero Wolf.


Por causa da minha orquídea que, se calhar, é descendente de alguma das que ele teria cuidado nas suas estufas. Porque a minha orquídea não pára de florescer.


Devo dizer que, por ser muito quente no Verão e muito fria no Inverno, a minha casa não é propícia à criação de flores. Todas as plantas que procuro trazer para dar um ar mais verde ao ambiente, passado umas semanas já estão a entregar a sua alma vegetal ao criador.


Todas - menos a minha orquídea.


Foi o meu amigo António, o meu habitual "fornecedor" de flores, que ma ofereceu há uns anos. E sem nenhum cuidado especial, a minha orquídea não pára de se reproduzir. Todos os anos tenho orquídeas novas, dou orquídeas a amigos, distribuo orquídeas pela casa toda - e no ano seguinte lá vêm mais. Esta semana acabei de colocar as últimas em todos os cantos disponíveis. E faz bem ficar a olhar para elas e ver como, apesar de tudo e contra tudo, todos os anos renascem.

Se calhar o velho e insuportável Nero Wolf é que tinha razão: que se lixe o que vai lá por fora - a minha orquídea não desiste."

1 comentário:

Susete Evaristo disse...

Parabéns pela escolha é um bonita crónica de Alice Vieira porém...
Pelo que tenho lido não acredito que a si se lhe aplique a segunda fraze do último parágrafo.
Não o vejo a dizer: que se lixe o que vai lá por fora.