Mãos certamente erguidas no ar quando a terra tremeu e o medo se passeou nas ruas. Minutos que pareceram horas, gemidos, gritos, dor. Hoje o Haiti "mora" novamente aqui. Aqui na nossa estupefacção, na nossa mágoa, na nossa impotência de formigas urbanas perante a força desta mãe-Terra. O Haiti que Caetano canta quando ligamos o rádio na manhã chuvosa e ouvimos as primeiras notícias ainda de olhos semicerrados. Nas mãos com que conduzimos o carro para o trabalho há um tremor ligeiro que teima em não passar, à medida que nos apercebemos da dimensão da tragédia.
Mãos. Mãos de mães que afagam crianças mortas. Mãos de velhos tentando tapar invisíves lágrimas porque ao corpo tudo agora falta, comida, água, e os ossos, a pele, o cérebro, o coração reservam toda a réstia de precioso líquido na tarefa de sobreviver. Mãos que continuam a juntar-se numa oração numa língua antiga a um Deus que parece ter-se esquecido que tanto sofrimento de tantos anos não merecia agora um tão cruel castigo. Mãos que resgatam gente dos escombros, respirando poeira, cuspindo pedras, sorrindo porque a Vida lhes deu nova oportunidade. Que recebem pacotes de bolachas distribuídas por soldados da ONU e os guardam nos farrapos que lhes cobrem o corpo como se preservassem barras de ouro. Uma menina com 4 ou 5 anos sorri feliz para a mãe porque conseguiram alguns desses pacotes, a vida continua e sobreviver é um exercício que rapidamente nos revela o artifício de todas as nossas convenções e berloques sociais...
Nestes dias do nosso Inverno, por entre as queixas da chuva que já cansa e da eterna "crise" com que sempre vivemos e que para tudo parece servir de alibi ou justificação paralisante, o Haiti "mora" novamente aqui. Entra-nos pelos olhos, revolve-nos as entranhas, cria momentos ainda há semanas atrás impensáveis como quando ouvimos dizer que o governo de Cuba abriu o seu espaço aéreo para deixar passar os aviões de ajuda às vítimas do sismo que ostentam nas asas a bandeira "inimiga", a bandeira dos Estados Unidos da América. Ou quando um qualquer fanático religioso, do pé para a mão, resolve utilizar a desgraça de tão miserável gente para falar em "castigo" por "pactos com o Demónio", escorados num passado de vudu, fumo de charuto negro, galinhas escorrendo sangue e quadros sépia de um velho combate colonial. Luz e sombras.
Mãos. Aquelas que esperam as nossas. Mãos sujas, mãos feridas, mãos gretadas, mãos multicores. Mãos que esperam o aperto forte das nossas, agora, já. Porque o Haiti é, por estes dias, um "abalo" para tudo aquilo que achamos garantido no dia a dia e para a lamechice gratuita com que tantas vezes iludimos a nossa inércia.
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