sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Memória


O Verão é também tempo de reflexão, de descanso, de espaço para deixar crescer outros interesses que o dia a dia vai aniquilando.

Não sei se no fim do Verão terei o pequeno livro que quero escrever. Sei, apenas, neste momento, que o "exorcismo" vai começar assim:


I


Lá ao fundo, a casa. O seu jardim onde velhos senis
passeiam, flores sem pétalas, um aroma de desinfectante no ar.
Ela não existe e ali está. Os miúdos jogam à bola na rua
e gritam muito, pelo portão os velhos espreitam
o universo paralelo que os escarrou.

Três vezes passo em frente dela
e três vezes me recuso a tocar a pequena campainha
onde os vermes começam a despontar.

Pelas janelas vislumbro sombras de espíritos
enrolados em cobertores, bocas desgrenhadas,
olhos translúcidos,
mãos como estiletes de osso apertando pacotes
de bolachas.

Toco na campainha e a ponta do meu dedo
acorda o Mundo, um silvo de bicho, abre-se a porta
e alguém pergunta “Sim?...”,
os velhos senis do jardim aproximam-se, suas faces
engelhadas de papiro, seus esgares que perderam
latitude e longitude,

desvio o olhar da porta

volto-me para trás

dentro do carro um vulto cinzento, um outro velho
imerso num mar de silêncios e vazios, corpo minguado de medos,
de doença, de respirações ansiosas na noite,
a alma regressa a espaços, tem dias,
tosse, sangue, afectos, lágrimas,

olho e não vejo

olho e não quero ver

pupilas brancas de medo

a porta aberta espera, os velhos regressaram ao deserto
de horas infindas

“Sim?...”

Estendo os braços para dentro do carro parado
e puxo aquele saco de ossos, olhos semicerrados, boca seca,
tento que movimentos esquecidos
ganhem forma, ganhem força, cravem em mim dedos
de menino envelhecido, de velho de fraldas,
arrastem os pés em metros que parecem quilómetros,

“vamos, pai?...”


Sem comentários: