Era uma vez um velho, muito vaidoso e muito rezinguento, que morava no alto de uma serra, perto de uma cidadezinha muito bonita e pitoresca.
Todos os dias o velho saía de casa à procura de algo de que pudesse dizer mal – se estava sol, queixava-se do calor; se chovia, queixava-se de ter os pés ensopados; se o Governador mandava podar as árvores, queixava-se da falta de sombra; se as crianças riam alto, queixava-se do ruído…
Para além de se queixar de tudo e de nada, o velho considerava-se a pessoa mais culta ao cimo da terra e desdenhava de todos os outros, considerando-os uns analfabetos ignorantes. Apenas permitia junto de si, em certas tardes em que servia chá na sua sala cheia de calhamaços e velhos discos de vinil, outros velhos e velhas amigas que o adulavam e elogiavam continuamente, enquanto trincavam bolachinhas e bebericavam chá.
“Meu caro, não há ninguém tão erudito como você nesta cidade e arredores!” – dizia um.
“Na cidade e arredores? Eu diria no continente todo!” – lançava outro.
“Meus amigos, atenção que em todo o Mundo duvido que haja mesmo alguém com tanta cultura, com tanta argúcia e com tanta capacidade de crítica!” – terminava um terceiro, servindo-se de chá.
E o velho ouvia e sorria, deleitado com tanta adulação e confortável naquele seu pequeno Mundo onde era rei e senhor…
Um dos alvos preferidos do velho era o Governador, porque em tempos lhe tinha negado a nomeação para Director Geral dos Arquivos Imperiais, algo que ele sempre considerara como seu – afinal, não era ele o homem mais culto, mais requintado, mais conhecedor de tudo e de nada, que existia naquela cidade?... Mas o Governador, temendo ter que aturar tanta rezinguice diariamente, preferiu dar o lugar a outra pessoa, facto que o velho jamais perdoou.
Desde essa altura passou a procurar as mínimas minudências para denegrir e atacar o trabalho do Governador. Assim, nas suas passeatas diárias, para além de embirrar com tudo e com todos com quem se cruzava, lá ía tomando notas, num bloquinho, das mil e uma ninharias com que poderia chatear o Governador, quer fazendo reclamações constantes nos serviços respetivos, quer escrevendo crónicas quase diárias que imprimia e colocava nas caixas de correio da cidade.
Certo dia, cansado de tanta queixa do velho e temendo que a população da cidade começasse a dar-lhe crédito e ainda o fizesse perder as eleições próximas, o Governador decidiu mandar chamá-lo para uma conversa pessoal.
O convite lá seguiu para casa do velho e este, entre o surpreendido e o curioso, compareceu ao encontro.
Sabendo o quão vaidoso era o velho, o Governador começou logo por saudá-lo com elogios sem fim:
“Muito obrigado por ter vindo, meu caro amigo, a luz da sua inteligência ilumina todo o meu palácio!”
“Obrigado… - replicou o velho – mas certamente o sr.Governador não me chamou aqui para me tecer elogios…
“Caro amigo, não existem elogios suficientes para a sua elevada craveira! O senhor é o farol moral da nossa cidade, a enciclopédia viva da nossa História, o anjo protetor face a todos os abusos!” – lançou o Governador enquanto mirava a reação do velho, que já começava a sorrir, vaidoso e inchado que nem um perú.
“Mas vamos ao que interessa, caro amigo – prosseguiu o Governador – Chamei-o aqui porque decidi propor ao Conselho Imperial de Comendas e Foguetório que o meu caro amigo receba a Ordem da Mais Elevada e Impressionante Inteligência, como corolário de tanta preocupação e sugestões que o senhor sempre procurou dar para melhoria da nossa cidade!...”
O rosto do velho iluminou-se! Ele teria ouvido bem?... A Ordem da Mais Elevada e Impressionante Inteligência?!... Algo que ele ambicionava há anos e que ninguém jamais recebera?... Mais - algo que ele considerava ter sido criado especialmente para si, porque não existia ninguém mais inteligente e culto naquelas redondezas?...
Tentando conter-se lá respondeu:
“Fico-lhe agradecido, sr. Governador. Obviamente que sei que mereço essa distinção e muitas outras, mas não posso deixar de lhe agradecer, claro..”
“Ótimo!” – exclamou o Governador – Mas gostaria apenas de lhe pedir uma coisa, muito simples, mas que faz parte da atribuição desta Ordem…”
“Sim?... Diga, então…” – respondeu o velho algo desconfiado.
“Quero que passe a usar a faixa da ordem, todos os dias, sempre que sair de casa e para que todos a vejam e o saúdem …” – disse o Governador.
O velho já mal conseguia disfarçar a vaidade que lhe saltava por todos os poros, já esquecera a anterior desfeita do Governador, todo um novo Mundo de bajulação se abria a seus pés!...
“…e – prosseguiu o Governador – em conjunto com o uso da faixa, terá também que passar a usar estes óculos, todos os dias, e sempre que sair de casa.”
E estendeu ao velho um par de óculos escuros.
O velho agarrou nos óculos e experimentou-os. Não conseguia ver rigorosamente nada!... Não eram uns vulgares óculos de sol, porque alguém pintara de tinta negra as lentes e nada se conseguia ver quando eram colocados…
“Que tal, meu caro amigo?...” – perguntou o Governador.
O velho ía a dizer que não conseguia ver nada mas entretanto o Governador prosseguiu:
“Espero que se sinta bem, porque as regras dizem que ninguém pode usar a faixa da Ordem se recusar usar os óculos ou, pior ainda, se disser que nada consegue enxergar com eles, porque são construídos de um material especial e apenas os iluminados, as grandes inteligências, conseguem ver o Mundo através destas lentes…”
O velho calou-se. Obviamente que não ía dizer que não conseguia ver nada – era o que faltava, perder aquela oportunidade única de obter a comenda mais desejada!...
“Vejo magnificamente, sr. Governador! Não se preocupe. Marque a data para a cerimónia de entrega da Ordem, que cá me apresentarei!” – atalhou o velho.
E assim foi.
O Governador organizou uma grande festa para entregar a faixa da Ordem da Mais Elevada e Impressionante Inteligência ao velho, que fez um longo discurso de 3 horas, onde se auto-elogiou largamente, perante a estupefação de uns e a bajulação de outros. A cidade engalanou-se e o velho inchou como um balão prestes a rebentar…
A partir desse dia o velho passou a sair de casa sempre com a faixa da Ordem atribuída ao peito e os respetivos óculos escuros. Obviamente que nada via e por isso tinha que caminhar muito devagar e tentando agarrar-se às árvores e casas por onde passava, tentando orientar-se. Nunca mais levou o bloquinho para recolher notas de maledicência e, quer as coisas estivessem bem ou mal na cidade, terminaram as suas queixas e as caixas de correio nunca mais foram inundadas com os seus panfletos de protesto contínuo.
Impante e completamente cheio de si, o velho resignou-se a ser “cego” quando saía de casa todos os dias e o Governador passou a ter menos aquela voz incómoda a massacrá-lo, pelo que, afinal, até podemos considerar que todos ficaram felizes com o negócio…
Moral da história: vocês sabem qual é, basta que tirem esses óculos escuros com que estão a lê-la…
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